quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Anistia e clientelismo

O processo de formação da sociedade brasileira, baseada na colonização, no escravismo, e com base no monopólio da terra, gerou segundo RobertoSchwarz, em seu livro "As idéias fora do lugar - Cultura e Política", uma relação entre latifundiários e homens livres (esses não eram escravos, mas também não possuíam terra) calcada no favor. A vida social e os bens dos segundos dependiam dessa relação. E é essa relação que afetou o conjunto da existência nacional, sendo o favor a mediação quase universal.
A relação de favor refletiu também na forma como se deu o processo de urbanização brasileira. Conforme cita a urbanista Ermínia Maricato, em seu texto do livro "A cidade do pensamento único": "...embora a urbanização da sociedade brasileira tenha de dado praticamente no séc. XX, sob o regime republicano, as raízes coloniais calcadas no patrimonialismo e nas relações de favor estão presentes neste processo.". Ela cita também que: "A lei se aplica conforme as circunstâncias numa sociedade marcada pelas relações de favor e privilégios."
É fácil relacionar as passagens dos seus autores citados acima, com o processo de "anistia" de construções irregulares, aprovada pela Câmara Municipal de Santos, na última quinta-feira, dia 09.
Segundo o arq. santista José Marques Carriço, o ato da "anistia" teve início a mais de meio século atrás, para formalizar moradias de baixa renda: "...no princípio, estas leis focavam as moradias de baixa renda, cujas tipologias não se enquadravam às exigências da norma urbanística elitista da época.".
É essencial registrar que atualmente existem outras maneiras de se fomentar e cobrar a regularização de moradias de baixa renda, por exemplo, pela obrigação do Poder Público em fornecer assistência técnica gratuita para famílias com renda mensal entre 0 e 3 s.m.. A assistência técnica objetiva dar melhores condições de habitabilidade através dea elaboração de projetos e acompanhamento das obras por técnicos habilitados, engenheiros e arquitetos. Esse instrumento no entanto permanece sem uso em Santos.
Ainda segundo Carriço: "...sobretudo após a década de 1990, as iniciativas de anistiar obras irregulares passaram a abranger construções de qualquer natureza", ou seja, retirando o papel social da lei - ainda que necessária somente à época de sua crianção - e transformando-a em um ato oportunista e clientelista.
A anistia, tal como é colocada hoje, privilegia e incentiva a execução de construções irregulares, em desacordo com as legislações e normas técnicas vigentes, independente de seu porte ou impacto que causa em sua vizinhança, deixando a certeza de que dentro de um determinado período, a Câmara de Santos irá anistiá-las.
A repetição periódica de aprovação de leis de anistia, que privilegiam construções ilegais, desqualificando o cumprimento da lei, aliada à fragilidade do aparato de fiscalização do uso e da ocupação do solo, segundo cita a arq. Ermínia Maricato no mesmo livro: "...é funcional para a alimentação de uma relação eleitoral arcaica.".
Felizmente o promotor de justiça do urbanismo e meio ambiente, Dr. Daury de Paula Jr., já alertou formalmente a Câmara dos Vereadores de Santos que irá tomar as medidas legais cabíveis para anular a anistia.
Espero que atos como esta lei de anistia, que alimentam relações de favor, oportunistas, clientelistas, e eleitoreiras sejam extintas. A sociedade brasileira precisa ter certeza de que certas relações de poder e de favor fazem parte apenas de sua história, e não de nossos dias atuais.